A Infidelidade do super-homem

André Alves

mudança_infidelidade.jpgUma das coisas das quais desisti nos últimos anos é o esforço para ser coerente. Admiti a contradição na minha vida, até como característica da minha personalidade. Mas não pense o leitor, que isso se deva a uma falta de caráter ou uma acomodação (Quiçá esquizofrenia?). Antes, trata-se do direito que me dou em mudar de ideia, ou melhor, do direito de mudar.

Isto quer dizer, que acho completamente justo querer fazer diferente do que já fiz, falar diferente do que falei, de não ser fiel, inclusive a mim mesmo. Mas esta falta de fidelidade não quer dizer que eu seja favorável a deslealdade ou a desonestidade, ou que sou um mentiroso e que ninguém pode contar comigo. Nada disso. Ao contrário, quando estou envolvido em algo, procuro estar de forma sincera, integral e verdadeira. O que não significa que preciso ser o mesmo o tempo todo. Na verdade, ninguém é.

Há pessoas que não têm a coragem de mudar, por isso são infiéis a si mesmas e cultivam a hipocrisia perante os demais. Amam a burocracia. Se mantém do mesmo jeito, porque abraçou um suposto essencialismo. Porém, como bem ilustra o rio heraclitiano “nenhum homem banha duas vezes no mesmo rio”, afinal no dia seguinte as águas não são mais as mesmas e tampouco o homem de hoje será o mesmo de ontem. Na filosofia, chamamos esse con

sartre-jovem

Jean-Paul Sartre (1905-1980), fiósofo francês existencialista.

stante vir-a-ser de devir. E foi-se o tempo que a substância aristotélica imutável e essencialista fizesse parte de um pensamento sofisticado. Depois de Nietzsche, e especialmente a partir do existencialismo do filósofo francês Jean-Paul Sartre, “a existência precede a essência”, e, portanto, o homem nada mais é do que “o conjunto de suas ações”. Pensar a partir de essências transcendentes, metafísicas, pre-definidas e imutáveis é completamente anacrônico filosoficamente falando.

Quem me conhece sabe que o que eu disse ontem, pode ser bastante contraditório ao que disse hoje. E não tenho vergonha nenhuma de admitir isto. Ao contrário do que pensava o sociólogo polonês Zygmunt Bauman que morreu esses dias e que criticava o mundo líquido por sua liquidez, eu não acho que devamos ver a fluidez da chamada pós-modernidade de maneira tão pessimista e negativa assim não. Até bem pouco tempo atrás, as pessoas se obrigavam a ficar num mesmo casamento infeliz até a morte, hoje o divórcio é plenamente admissível. Aliás, até namoros fixos e duradouros já não andam sendo mais tão interessantes.

Mas você é a favor do descompromisso, André? Sou a favor da liberdade de ser e de deixar de ser. Se as relações forem sinceras e agradáveis aos lados, não vejo nenhum problema em mantê-las. Mas estar junto simplesmente porque as coisas precisam ser para sempre, definitivamente não faz o menor sentido. Já disse o poeta Vinícius de Moraes “O amor que seja eterno enquanto dure”. Então você é a favor da frivolidade? Eu responderia, que não precisamos olhar o frívolo de maneira tão negativa e moralista. A própria vida é frívola. Entretanto, ao falar do direito de mudar penso isto e um pouco além.

Em época de gêneros fluidos, de “trans-isto” e “trans-aquilo-outro”, penso que no direito de mudar como uma superação de si mesmo, um crescimento contínuo, um auto-avaliar-se-constante. Outro dia, vi o Zé Celso dizer que esse trans, é o trans-homem do Übermench de Nietzsche, o qual deveria ter sido corretamente traduzido como trans-homem e não super-homem com tem sido comumente traduzido. Gostei da comparação. Vejo pessoas que sofrem porque se cobram de ter de serem de determinadas formas que a sociedade exige, a igreja exige, os pais exigem, etc. Não nego que também me vejo no dever de ser isso tudo que esse superego social exige e que as convenções sociais nos obrigam, mas penso que há uma brecha para o direito de mudar, de experimentar novas possibilidades de ser, de subverter costumes. Ninguém nasce prederminado, a não ser a morrer, nem sequer ser homem ou mulher. Tudo não passa de predefinições jurídicas, pol

Judith Butler

Judith Butler, filósofa que fala da interpelação e da perfomatividade.

íticas, religiosas, econômicas, as quais somos interpelados para usar uma expressão da filósofa estadunidense Judith Butler. Sim, de fato, como diz a própria Butler, somos obrigados a performatividade, a exercer um papel. O bebê nem nasceu, e alguém, baseado no pequeno
órgão sexual do feto, já diz qual será o seu nome, que é o menino ou menina e que cor de roupa irá usar ou que brinquedos irá brincar. A violência, é característica tão humana, que é exercida pela medicina, pela lei e até pelos mais doces e bem intencionados pais. É preciso transmutar, nietzchianamente falando, encontrar os próprios valores.

É preciso ser mais do que um sexo. É preciso ser mais do que um gênero. É preciso ser mais do que roupas e brinquedos. Não. Estas coisas não podem nos determinar de vez. Se tudo isso foi convenção humana, então pode ser mudado, pode ser transitado. A liberdade reside aí, na capacidade humana de não repetir, de criar novos mundos, novas linguagens, novas culturas, novas formas de ser no mundo.

É por isso que mudo de ideia sempre. Desculpe, mas continuarei a ser infiel como prova de meu comprometimento e minha lealdade.infidelidade2

 

São Paulo, 01 de março de 2017.

Sobre philocultura

Sou alguém que por sobrevivência e amor ao saber me dedico a diversas áreas do conhecimento.
Esse post foi publicado em Crônica, Filosofia e marcado , , , , , , , , . Guardar link permanente.

Uma resposta para A Infidelidade do super-homem

Deixe um comentário